domingo, 15 de outubro de 2023

Fênix

 Caio,


Ressurgi das próprias cinzas. À beira do abismo me lancei e voei como Ícaro até o sol. A cera de minhas asas derreteu até que do alto caí. Em uma elipse mergulhei no infinito céu azul enquanto o vento passava ligeiro por mim. Caí em mim quando meu corpo morto afundou nos verdes mares da incompreensão. Flutuando em água e sal pouco a pouco cheguei ao fundo [de mim]. Pus os pés no solo [tão só] e impulsionei em camêra lenta o retorno à superfície. 

Ainda úmida descansei sob o sol quente. Queimei até o último milímetro de pele. Voltei ao pó como cinzas. E do pó retornei. Reconstituo minha existência. Todos os dias, a cada dia. Faço-me nova em muitas dimensões. Sim, estive para além da beira do abismo, morri e renasci.

Viver é gerúndio. Sigo vivendo esta nova vida na mesma vida. Sou outra, como de hábito. De ti breves recordações. É uma nova existência em que não há lugar para ti. 

Tua existência dependia da minha, mas se já não existo como fui, então como poderias seguir existindo. Renovo, ressurjo, renasço, corporifico o mesmo corpo com alma nova. E tu... Sinto dizer, Caio Marques, não há mais lugar para ti na teia desta vida que ora teço. 

Já não cabes, já não caibo, já não cabe história ou memória entre nós. Tudo o que vivemos já foi tecido em outras cores. Está lá derramado sobre o sofá guardado no quarto dos fundos. Foi lindo o que vivemos. Foi. 

Sigo, como sempre sigo, ressurgindo das cinzas a cada volta do parafuso. 

Anita Lopes




sábado, 20 de maio de 2023

Carta do novo ciclo

 Querido Caio,


Finalmente me desarmo. Exausta largo a armadura úmida sobre o tapete, deito as armas uma após a outra. Olho em volta, busco um lugar seguro para enfim descansar. Deixo-me cair em frente à janela distante. Dispo-me com olhos longínquos e esvaziados. Surpreendo-me todos os dias com a mulher que andava entrincheirada por detrás dos muros. Sempre armada, nunca assustada. Agora que a vejo despida quase não a reconheço. Tão frágil, silenciosa e solitária. Vejo o desamparo em seus olhos e logo fica evidente que a solidão a acompanha desde sempre. 

Ladeada pela solidão seguiu seu caminho armada até os dentes. Não se entregou jamais. Sempre forte diante dos obstáculos e desafios manteve-se na caminhada cheia de certezas absolutas muito duvidosas. Sempre seguindo. Sempre fugindo. A verdade, Caio, é que mais uma vez segui. Não, eu não consegui permanecer além de 2022. Precisei sair às pressas como sempre fiz e se me perguntares agora o porquê da fuga, diria que foi insuportável me ver escondida entre paredes, protegida e sob o manto da invisibilidade e a armadura de guerreira ou talvez tenha sido insuportável ver que só consigo estar na vida quando protegida por muros e máscaras.

Sim, fugi. E agora, desarmada, sinto-me desalmada. Derretendo dia e noite, descubro que tudo o que fui não era. Não me surpreende que a ficção tenha sido tão presente e o único lugar seguro, além do trabalho compulsivo. Pergunto-me todos os dias o que mantém as pessoas vivas, se despida sinto-me sobrevivendo. Não sei ser sem a armadura, não sei ser. Nada mais faz sentido, Caio. Nem minha escrita faz sentido. Tento concluir o Um Amor em 7 cidades para inscrever no edital ao tempo em que constato que C. era mais que ficção. Quem sou? Para quê estou aqui? 

Para escrever ficção? A única ficção que escrevo é a vida que [sobre]vivo. As únicas estórias interessantes são as que invento a meu respeito. Sou uma atriz sem platéia, uma escritora não publicada, uma mãe negligente, uma péssima esposa, sou nada. E olha que passei a vida parecendo ser o melhor de cada um desses papéis que o dramaturgo da vida me deu. Falhei! Falhei miseravelmente. E agora, se o que faço para permanecer na vida é alimentar a ilusão de que posso contribuir de algum modo com o saber que recolhi ao longo do caminho. Ilusão. Cada ser em si faz seu caminho enquanto caminha. E o meu caminho é uma obra inacabada de ficção. Até meus amores foram todos inventados para performar alguém que não sou. Tudo fingimento. 

E quando me leio aqui contigo sinto tristeza de me ver assim nesse lugar de desamparo. Vagueando pelas ruas, andarilha descalça. O que mantém alguém na vida? Para uns o fio fino que as conecta é a viagem psicodélica das drogas lícitas ou ilícitas, as metas insanas de uma sociedade voraz e capitalista, o sexo ou os enlaces e histórias de fracassos amorosos sucessivos, o trabalho [que dignifica o homem], as compras e os prazeres terrenos. O que me mantém viva? 

Antes era a ficção. E agora que o pano caiu, o que restou para me manter aqui? Não vejo sentido. Não quero te ferir, nem traumatizar os meus, sequer quero causar espanto [afinal, Anita tem tudo]. 

A vida é vazia de significados e nas últimas décadas dei um significado inventado, mas estou cansada de criar significancia para as coisas, de inventar razões de existir. Quero dormir, apenas dormir eternamente. Quero retornar para onde nunca devia ter saído e - pasme! - lá permanecer. 

Parece covarde? Não é, nem é. E se a vida é vazia de significados, não há significado em morrer. Não somos todos pó? Não retornaremos a ele em algum momento? Por que não agora? Por que esperar a decrepitude ou uma bala perdida. Por que não dormir e não mais acordar? 

Talvez me perguntes: E teus gatos? E respondo, estou certa de que encontrarão uma alma boa que lhes dê conforto e comida pelo resto dos seus dias. 

Eu, de minha parte, parto. 

Deixo-te finalmente e ponho um ponto final nessa nossa história sem pé, nem cabeça. 



*esta é uma obra de ficção qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência. 


terça-feira, 19 de julho de 2022

Caio, fim de sessão!

 Caio,


Caio diante de minhas circunstâncias. Caio aos pés das contradições que me compõem. Caio. Depois de tanto tempo, ainda caio. 

Pergunto-me vira-e-mexe por onde andarás tu,Caio Marques enquanto toco com as pontas dos dedos as marcas deixadas por ti. Cicatrizes? 

Eu me perdi ao te encontrar e me encontrei ao te perder. O que mais posso dizer depois de dois anos e dias de um isolamento compulsório seguido de meses de isolamento compulsivo. Já não sou mais quem fui, já nem sei quem sou e descobri essa estranha mania de me voltar para dentro, de permanecer na segurança dos muros, das paredes de pedra e a fruir a vida por uma lasca de céu no quintal, um vão da janela. Prisioneira de mim, sinto-me livre para viver intensamente minha própria companhia. 

O que me contas? Por onde andastes nesse tempo fora do tempo? Quem te tornastes? 

Eu de cá vi cair as máscaras de quem acreditava ser e vivo hoje com todas as minhas peles penduradas no varal. Despida completamente observo curiosa quem sou por debaixo da carapaça. Tão vulnerável e tão resistente. Tão rígida e tão incrivelmente malemolente. Finjo ser quem de fato sou ou sou quem nunca fui. Não sei. Confesso que não sei. 

Neste ano de 2022 nada sei a meu respeito, exceto que estou viva e silenciosamente observo o mundo a meu redor para além dos muros, para além das paisagens da janela, miro o infinito e é tão particular, tão profundo quanto a cova rasa que nos espera. Espero.

E a espera é algo novo por aqui. Se bem te lembras, eu sigo. Ao seguir, eu fujo. Fujo ligeira, fujo escondida entre véus e fumaça. Desapareço, deixando pedaços de mim pelo caminho. Então, me disponho à espera, à permanência. Coloco-me aqui sem casca, sem muros, sem proteção à espera. Olho para a tela vazia, deslizo meus dedos sobre o papel em branco... Lá estou eu, um ponto no meio do vazio criador, pronta para me recriar, pronta para me tornar quem sou. 

Nunca fui tua, agora vejo. Tu és meu. 

Não imagino como estás, nem quem és agora. Cabe a mim te recriar, te dar um destino. Da minha cabeça tu nascestes e é ela que agora te coloca no lugar de ouvinte silencioso. Como um psicanalista sentado na poltrona no canto da sala, com seus óculos de aros escuros, com seu cachimbo na boca, um bloco, uma caneta, pernas cruzadas e grisalhos cabelos em desalinho. Seu lugar [agora] é este. O observador de mim. Nada de opiniões ou comentários, nada de afetos, apenas o respeitoso silêncio observador. 

E assim, tomo as rédeas da história e coloco-te em teu lugar.

Finalizo ciclos, finalizo estórias, concluo projetos, percursos, passados. Estou às voltas com o ponto [final].


Anita Lopes




sábado, 11 de junho de 2022

Carta para Ele

 Àquele que não encontrei

SJDR, 11 de Junho 2022


Hoje Vênus está em Touro. Finalmente juntos o signo e seu regente, com todo o tempo do mundo para sentir. Todo o tempo para saborear e viver as sensações e os prazeres da mesa, da cama, do chão e do infinito particular deste encontro. 

Hoje, véspera do dia dos namorados do ano de 2022, o começo da segunda década do século XXI. E sigo. Sigo a caminhada iniciada há 5 décadas, mudando de endereço, de cidade, de estado, de região e, quem sabe de país em busca da saudade do que não vivi, dos olhos que nunca vi, do cheiro que ainda não senti. 

Hoje, dia em que comemoro os 22 anos de separação do pai dos meus filhos. Dia em que celebro tantos dias dos namorados aquecida por um tinto ou refrescando a vida com as borbulhas da espumante, bem acompanhada com amigas, em festas de solteiras. Dia de lembrar da crônica lida em Arcamundo  'amigos são para sempre'. 

[são para sempre?]

Hoje diria que tudo o que guardo na memória é para sempre. Tudo o que me lembro [e me lembra] é para sempre. Não é bom ou mau. É eterna em mim a saudade do que não vivi, o força do olhar com no qual meus olhos ainda não pousaram, o aconchego do abraço na noite fria que no endereço número 36 não encontrei. E, por uma estranha razão, que não sei se é cansaço ou sabedoria já não me entristece. 

A saudade já não é nostalgia é memória e desejo de manter acesa a chama no centro da casa e o sorriso que ora me habita suave e terno como agora me encontra. 

Tanto tempo em busca de Ti nesta Terra de ninguém. Tanto tempo me negando a receber todas as dádivas que me foram ofertadas por que não vinham de Ti, para enfim perceber que sempre foram Tuas. Que sempre vieram de Ti e que, ao contrário do que pensava, não estaria te traindo ou substituindo. Estaria sim, [re]vivendo novos momentos com outras formas de Tua manifestação. 

Percebo agora quantos nãos disse, quantas portas fechei, quantos finais escrevi, quantas cartas finais enviei, quantas vezes busquei em fuga teu colo, quando sempre estivestes disponível para mim em outros braços, em tantos abraços, em quantos olhares doces e disponíveis. 

E talvez...só talvez escolha agora desconsiderar o chamado, os gritos, os gestos que me sinalizam a partida  e serenamente fique. Talvez incorpore toda essa energia para pintar as paredes, empurrar os móveis, reformar o terraço, ajeitar o jardim e, simplesmente permaneça. Serenamente permaneça. 

Talvez suba a Serra e la do alto me aventure a permanecer sentindo a brisa fria do inverno passar por mim, como por tantos já passei. Talvez permaneça ali por tantas horas que o sol se despeça e me abra a chegada da noite estrelada, talvez aceite tuas dádivas e abra meu coração para o teu Amor que sempre esteve disponível para mim. 

Talvez agora me permita preencher com teu Amor abundante e diga Sim em lugar de tantos Nãos. Talvez agora possa finalmente me entregar ao teu Amor e transbordar o meu Amor sem reservas ou senões. 

Talvez, só talvez este seja um ano diferente em que eu finalmente pare de correr. E se ainda me quiseres, cá estou. Pronta para dizer sim e me entregar a Ti completamente. 

Sempre Tua, 

Anita Lopes.


sábado, 1 de janeiro de 2022

Saudades de mim

Setembro, 2020. 

Caio,

Hoje eu acordei com saudades de mim. Saudades de dançar sem roupas no quintal, cozinhar mil coisas ao mesmo tempo. Música, longos banhos, nenhuma agenda e um inadiável compromisso comigo. Senti saudades de comer devagar ao som de sonhos. Saudades de abrir as janelas e o coração. Senti saudades de escrever. Senti saudades de te escrever. E talvez tenha sentido saudades de ser lida.

Ser lida? Ser lida. Lido todos os dias com a lida dos dias, dos desafios, das emoções, de mim e de minhas circunstâncias. Lido com o confinamento e com a liberdade de ser. Lido com a vida como ela é, brutalmente real. Lido com as ilusões que partiram e me deixaram com a mala na mão diante da estação. Lido com a necessidade real de ser lida por que mesmo o sol quente já não é suficiente para aquecer a minha pele fria.

E assim passam os dias reais. Estou bêbada de tanta realidade. Faz mais de ano e dia que não escrevo ficção, que não invento amores impossíveis e serenamente me sento para tomar sol no batente da cozinha olhando o muro encardido pelos meses de isolamento compulsório. Está úmido... em tempo de desmoronar diante da vida real. 

A realidade é um silêncio e longos dias. Um silêncio que se expande no canto dos passarinhos, no miado dos gatos e nos latidos insistentes da cachorrada da rua. A realidade é um cotidiano sem grandes novidades aqui dentro e um mundo em ruínas lá fora, onde o número de mortes físicas se acumula com o crescimento exponencial do número de mortos-vivos. 

Somos o futuro sem futuro. Somos o presente se reinventando a cada amanhecer. Ou sou só eu? Talvez seja apenas eu aqui entre as paredes da casa, tomando sol no batente da cozinha, mudando de cômodo como quem muda de casa, variando as paisagens ao mudar o angulo ou a perspectiva da sala de estar. 

Talvez seja apenas eu... Arrastei os móveis. Mudei tudo de lugar. Transformei espaços. Só. Só o quarto de dormir permanece igual: Mesma cama de casal, com dois travesseiros, coberta com o lençol de flanela xadrez a aquecer as noites sempre frias da casa vazia, da cama vazia, desta vida cheia de novas perspectivas para o velho dilema. Ser ou não ser... Ficção.

Na dúvida... sigo viva, estou farta de fake views.

Anita Lopes 


P.S. Escrita em 26/09/2020, mas ainda sinto saudades até do sol no batente da cozinha. Será que minha palavra é saudade?